Crianças e adolescentes sob proteção: um breve retrospecto histórico
Leiziane de Lima Romanholi
Assistente Social formada pela Faculdade Estadual de Educação, Ciências e Letras de Paranavaí-FAFIPA, pós-graduanda em Gestão Publica Municipal pela UEM, integrante da equipe de referência do Serviço de Proteção Social a Adolescentes em Cumprimento de Medida Socioeducativa
de Liberdade Assistida (LA) e de Prestação de Serviços à Comunidade (PSC) do CREAS de Paranavaí.
Resumo
O presente trabalho se fundamentou em uma pesquisa bibliográfica de caráter exploratório com o intuito de fazer um breve retrospecto do trato dispensado a crianças e adolescentes sob a proteção do Estado e da sociedade. O estudo apontou que crianças e adolescentes foram tratados de forma superficial ao longo da história brasileira por parte do Estado e da sociedade, sendo público de ações caritativas e ineficientes frente às demandas apresentadas por este público. O referido contexto ganha nova configuração com a incorporação da Doutrina de Proteção Integral à Constituição Federal de 1988 e se consolida com a Promulgação da Lei nº 8069/1990 - Estatuto da Criança e do Adolescente o qual afigura-se basilar conquista legislativa de proteção aos direitos de crianças e adolescentes brasileiras.
1. Introdução
O olhar adulto sobre crianças e
adolescentes ao longo da história brasileira foi direcionado para imposição de
ações e idéias, desconsiderando-se suas condições peculiares de pessoa em
desenvolvimento, com interesses especiais advindos do período vital no qual se
encontravam. Sob o aspecto legal, eram desprotegidos contra as vontades adultas
e vistos como meros receptores do que lhes impunham ser o ideal.
É com a promulgação da Constituição
Federal que o princípio de igualdade perante a lei premissa que esta parcela da
população seja vista sob a ótica da proteção integral e, a partir desta,
consolida-se o Estatuto da Criança e do Adolescente o qual, valendo da isonomia
legal, permite que os desiguais sejam igualados perante a lei.
Deste modo, o presente trabalho
apresenta brevemente alguns aspectos históricos e legais sobre o tratamento a
crianças e adolescentes no país e até a conquista da incorporação da doutrina
de proteção integral no país.
Aspectos históricos e Legais
No Brasil, até o início do século XX, não se observavam ações estatais com vistas à proteção de crianças e adolescentes. As ações desenvolvidas junto às populações carentes, doentes e crianças abandonadas eram provenientes da Igreja Católica, conforme indica Leite (2009, p. 20). Um equipamento muito comum à época presente nas instituições católicas era o Sistema de Rodas ou Rodas dos Expostos. Nestas eram entregues crianças cujas mães não podiam assumi-las publicamente, em decorrência dos austeros costumes da época ou não tinha condições de mantê-las.
Em 1912, um projeto de lei
apresentado pelo então deputado João Chaves permitiu a criação do primeiro
Juizado de Menores, tendo como Juiz Mello Mattos, destinado a julgar as causas
dos “materialmente abandonados; moralmente
abandonados; mendigos e vagabundos até a idade de 18 anos, e os que tiverem delinquido, até a idade de 16 anos". (RANGEL e CRISTO, p. 3).
Essa
regulamentação foi sendo revisada e consolidou-se em 1927, na
promulgação do Código de Menores, também conhecido como Código Melo Mattos, que
apresentava-se com o objetivo de atender o menor, com menos de 18 anos, de
ambos os sexos, que estivessem em situação de delinqüência e abandono, porém ao
mesmo tempo em que na perspectiva caritativa e assistencialista abre espaço
para o atendimento a crianças e adolescentes abandonados, continua na intenção
de “limpeza” da sociedade, de reajuste dos desagregados, como afirma Rangel e
Cristo (p. 3-4):
Por este motivo, a ambigüidade se fez
presente em todos os capítulos do Código de 1927. O Capítulo IX, por exemplo,
proibia o trabalho aos menores de 12 anos e impunha restrições aos locais,
horários e jornada diária dos trabalhadores menores de 18 anos, trazendo para o
Código regras regulamentadas, até então, por decreto, desde 1891. Era vedado
aos meninos até 14 anos, e às mulheres solteiras até 18 anos, qualquer tipo de
trabalho nas ruas, praças e lugares públicos. Normas regulamentadoras de
direitos, como estas, visavam, também, objetivos menos nobres, excludentes.
Em
1942, na ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas, foi criado o Serviço de
Assistência ao Menor - SAM, um órgão pertencente ao ministério da Justiça que
possuía atuação corretiva e repressiva e que possuía tratamento diferenciado
aos adolescentes infratores e aos abandonados:
Tratava-se de um
órgão do Ministério da Justiça e que funcionava como um equivalente do sistema
Penitenciário para a população menor de idade. Sua orientação era
correcional-repressiva. O sistema previa atendimento diferente para o
adolescente autor de ato infracional e para o menor carente e abandonado [...]
(LORENZI, 2007)
Além
do SAM, foram criados à mesma época programas a nível federal, com liderança da
primeira dama, de cunho assistencialista como a Legião Brasileira de
Assistência – LBA.
Nas
décadas seguintes, até 1964, o país passou por um processo de redemocratização
e iniciação da mobilização popular que propiciou a visualização da sociedade em
relação ao Serviço de Assistência ao Menor – SAM como altamente repressivo,
punitivo e desumanizante, ganhando até o vulgo nome de “universidade do crime” (LORENZI,
2007).
Na
segunda metade da década de 1960, Serviço de Assistência ao Menor se torna
Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor – FUNABEM, através da Lei 4.513 de
1/12/64, porém não simboliza mudanças na forma de visão e atuação do SAM, bem
como instalações e pessoal.
No
fim da década de 1970, é promulgado um novo Código de Menores, na vigência do
período ditatorial militar. Foi uma revisão do Código de Menores de 1927 que
também não apresentava mudanças contundentes no trato de crianças e
adolescentes, mas que conferia a autoridade judiciária ilimitados poderes nas
decisões relacionadas a esse segmento, como explana Arantes (1999, p. 258 in MORAIS, 2009):
Código
de Menores, particularmente em sua segunda versão, todas as crianças e jovens
tidos como em perigo ou perigosos (por exemplo: abandonado, carente, infrator,
apresentando conduta dita anti-social, deficiência ou doente, ocioso,
perambulante) eram passíveis, em um momento ou outro, de serem enviados às
instituições de recolhimento. Na prática isto significa que o Estado podia,
através do Juiz de Menor, destituir determinados pais do pátio poder através da
decretação de sentença de "situação irregular do menor". Sendo a "carência"
uma das hipóteses de "situação irregular", podemos ter uma idéia do
que isto podia representar em um país, onde já se estimou em 36 milhões o
número de crianças pobres. (ARANTES, 1999, p. 258).
Após
o período de ditadura militar, na segunda metade da década de 1980, começa o
processo de redemocratização e pré-contituinte, espaço propício para
incorporação de novas discussões sobre as crianças e os adolescentes no país.
É
neste contexto que surgem basicamente dois grupos organizados na sociedade em
torno da discussão: um defendia a reafirmação do Código de Menores enquanto que
o outro lutava para que as premissas da Doutrina
de Proteção Integral da Organização das Nações Unidas, que abordava a criança e
o adolescente como sujeito de direito, fossem incorporadas a nova Constituição
e assim significasse um grande avanço nas discussões em torno do assunto:
Para os movimentos sociais pela
infância brasileira, a década de 80 representou também importantes e decisivas
conquistas. A organização dos grupos em torno do tema da infância era
basicamente de dois tipos: os menoristas e os estatutistas. Os primeiros
defendiam a manutenção do Código de Menores, que se propunha a regulamentar a
situação das crianças e adolescentes que estivessem em situação irregular
(Doutrina da Situação Irregular). Já os estatutistas defendiam uma grande
mudança no código, instituindo novos e amplos direitos às crianças e aos
adolescentes, que passariam a ser sujeito de direitos e a contar com uma
Política de Proteção Integral. O grupo dos estatutistas era articulado, tendo
representação e capacidade de atuação importantes. (LORENZI, 2007).
Em 1989 foi promulgada a nova Carta
Constituinte Brasileira. O grupo que obteu êxito em seus argumentos foi o que
lutava por mudanças profundas em relação ao Código de Menores. Como afirma
Lorenzi (2007):
Na Assembléia Constituinte
organizou-se um grupo de trabalho comprometido com o tema da criança e do
adolescente, cujo resultado concretizou-se no artigo 227, que introduz
conteúdo e enfoque próprios da Doutrina de Proteção Integral da Organização das
Nações Unidas, trazendo os avanços da normativa internacional para a população
infanto-juvenil brasileira.
Deste
modo, este artigo representou um avanço extremamente significativo para a
proteção de crianças e adolescentes garantindo dentre outros direitos
fundamentais a proteção especial em casos extremos como a negligência, a
opressão e a exploração.
Mas
a consolidação desses direitos afirma-se com a promulgação da Lei 8069 de 1990,
o Estatuto da Criança e do Adolescente. Nessa perspectiva muitos aspectos
contidos no Estatuto do Menor foram superados, um em especial abordamos, que
dispõe sobre os poderes ilimitados que o Estado possuía sobre os adolescentes,
como aborda Lorenzi (2007):
Como exemplo disto pode-se citar a
restrição que o ECA impõe à medida de internação, aplicando-a como último
recurso, restrito aos casos de cometimento de ato infracional.
Atualmente, décadas após sua promulgação, o Estatuto da Criança e do Adolescente ainda
apresenta muitos desafios a serem transpostos, especialmente no que diz
respeito às medidas socioeducativas aplicadas aos adolescentes com o
intuito da superação da prática do ato infracional, ainda vistas de forma
ineficiente por parte da sociedade.
Considerações Finais
Percorrendo brevemente alguns aspectos históricos e legais do país no que tange ao trato com crianças e adolescentes por parte da sociedade e do Estado, observa-se que as condições peculiares de desenvolvimento bem como sua condição de cidadãos de direitos foram desconsideradas por longo período, até o advento da doutrina de proteção integral ratificada na CF de 1988 e consolidada no ECA.
Ao incorporar a doutrina de proteção integral, Estado e sociedade passam a olhar tais condições peculiares como base a ser considerada na formulação de políticas públicas, intervenções e ações, primando não somente responsabilizar mas proteger e orientar.
Do mesmo modo que a história demonstra que as imposições e equívocos dispensados a esta parcela populacional precisaram ser modificados, estudar tais mudanças ocorridas nos períodos recentes e nos aparatos legais propicia que sociedade e Estado sejam cooperados da família na efetivação dos direitos de crianças e adolescentes, nos mais variados aspectos, inclusive nos desafios postos ao atendimento de adolescentes em conflito com a lei.